OS CRISTÃOS PROGRESSISTAS E A CRISE DA ESQUERDA NO BRASIL

A história dos povos continuará como sempre foi: uma parcela da população encara os sistemas vigentes como “normais”, “inevitáveis”, e, até “bons”. Neles as desigualdades são vistas como “da natureza das coisas”, “é assim mesmo”, ou, até mesmo “é como Deus quer”. A sua reflexão, sistematizada ou não, é denominada por Karl Manheim, de Ideologia: a justifica racional do status quo. Serão essas pessoas chamadas de “conservadoras”, e, em suas manifestações mais exaltadas, de “reacionárias”: os que reagem contra as mudanças, encaradas, em princípio, como sempre más. As mobilizações por alteração nesse desenho social assimétrico, desigual, concentrador, rigidamente estratificado, serão emocionalmente denominadas de “anarquia” ou “baderna” e os seus lideres receberão o epíteto de “agitadores” ou “subversivos”.
A Ideologia tem maiores seguidores entre os que estão no topo da pirâmide social, usufruem privilégios, e se sentem ameaçados, e (para alguns, surpreendentes: entre os que se encontram na base da pirâmide social, excluídos, oprimidos ou explorados, com uma visão fatalista ou o temor às vezes inconscientes) da repressão. Para estes é introjetado um pensar o mundo a partir da ótica dos de cima (hegemonia). Qualquer sentimento de mudança para uma situação melhor não inclui uma consciência de mobilização e reivindicação, mas a esperança na caridade dos de cima, no príncipe ilustrado e bondoso, na retórica populista ou no apelo messiânico.
Há sempre segmento dos conservadores que defendem mudanças setoriais, acidentais, secundárias no sistema, sem que estas venham a questioná-lo ou comprometê-lo. Denominemos-los de “reformistas”.
Esses conservadores – moderados ou exaltados, reformistas ou reacionários – em qualquer época ou sistema, formam o que ficou denominado (desde a Assembléia Nacional francesa pós-revolucionária) de direita.
Uma outra parcela da população, contudo, tende a encarar os sistemas vigentes como “antinaturais”, “anormais”, “evitáveis”, “maus” e cuja substituição por outros que melhor expressem a justiça e a igualdade, deve ser tido como “possível”, “necessário”, e, até mesmo como “inevitável”. A sua reflexão, sistematizada ou não, é denominada por Karl Manheim, como Utopia: a critica e a denúncia ao status quo, o sinalizar de alternativas.
Há a crença na necessidade de um processo educativo de conscientização, de mobilização, de reivindicação, com o surgimento de líderes e de intelectuais comprometidos. Todo esse esforço se fez com um apelo ético e a crença que se constitui em uma ampliação do conceito de cidadania.
As utopias tendem a ter mais seguidores dentre os estratos médios da pirâmide social, aqueles com um nível razoável de instrução e renda, e tempo livre para a leitura e a militância.
É claro que, nem sempre, a situação de classe corresponde à consciência de classe.
Dentre os proponentes das utopias encontramos os que as defendem de forma gradual e pacífica, ou de forma mais rápida e violenta. São elas: os “reformistas” e os “revolucionários” de várias matizes. Esse conjunto (também desde a Assembléia Nacional francesa pós-revolucionária), forma o que é conhecido como a esquerda. Centro, centro-esquerda, centro-direita são semi-tons, ou variações, do mesmo fenômeno.
Politicamente, a direita já representou a defesa da monarquia absoluta e das ditaduras republicanas, como autoritarismos, ou o fascismo e o nazismo como totalitarismos, vinculada hoje à democracia partidária representativa formal. Economicamente, a direita já representou a defesa do modo escravista e feudal (servidão), vinculada hoje ao modo de produção capitalista, com suas variações.
Politicamente, a esquerda já representou a defesa da revolução burguesa (liberal), do socialismo utópico e da ditadura dita do proletariado (hoje com, ainda, remanescentes), vinculada hoje ao aprofundamento social e econômico da democracia, com maiores mecanismos de participação e controle popular. Economicamente, a esquerda tem defendido a substituição do capitalismo por formas socialistas ou pós-capitalistas de produção, ou a humanização do capitalismo, pondo os resultados de sua dinâmica à disposição de setores mais ampliados da população (social-democracia, terceira via etc).
Há, na conjuntura atual, algo mais do que uma mera hegemonia da direita (pensamento neoliberal), mas um domínio da direita, com o monopólio geopolítico do império norte-americano, e o oligopólio geopolítico dos seus associados (G-8), com fortes instrumentos internacionais de controle (FMI, OMC, Banco Mundial) e de multinacionais. A soberania nacional, a autodeterminação dos povos, a soberania popular, as reais possibilidades de um leque de opções são brutalmente limitadas pela ameaça de intervenções militares ou sanções econômicas.
A consciência de que os candidatos podem apenas propor alternativas adjetivas, no secundário, e, que, na verdade se constituem em meros administradores, sem autonomia, leva ao descrédito da rotina formal das eleições, e do próprio sistema democrático.
É claro que dentro do sistema capitalista internacional e nacional continuará a haver diferenças entre os seus atores, como “conflitos compostos” (expressão de Luciano Martins) que sempre existem entre frações diferentes dentro dos estratos dominantes.
A política – inclusive internacional – é algo dinâmico e mutável. Falharam todos os que quiseram controlar a História. Antes, a História é um cemitério de impérios e um museu de tiranos, sempre com um lugar preparado para o próximo. As pessoas continuam a pensar, se inconformar e propor, negando a validade do determinismo do “Fim da História” (Francis Fukuyama). A opinião pública internacional diante da invasão norte-americana ao Iraque, ou às reuniões da OMC, e o Fórum Social Mundial são sinais dessa vitalidade, com desdobramentos imprevisíveis.
Há uma consciência crescente no valor de cada pessoa e de cada cultura, no direito inalienável à autodeterminação dos povos em um sistema internacional multilateral, e que o modo de produção capitalista não é o fim de todo o pensamento econômico.
Nessa conjuntura se insere o Brasil, historicamente e estruturalmente desigual e excludente, com sua circulação de elites e mudanças conservadoras, sempre “pelo alto”, pelos atores “de cima”, seja a Independência ou a Abolição, a República ou a Revolução Burguesa de 30, o ciclo militar ou a “Nova República”.
O liberalismo, como proposta de mudança no século XIX era empalmado pelos mesmos bacharéis, tornando uma realidade a descrição de que “nada tão parecido com um conservador quanto um liberal no poder”. A República nos vem na esteira do autoritarismo positivista nos meios militares. O Anarquismo e o socialismo utópico (embrião do nosso sindicalismo) nos chega entre imigrantes, e nunca deita raízes. O Marxismo terá a liderança de um oficial do Exército, recrutando a maioria dos seus quadros nos estratos médios, submissos aos ditames de uma potência estrangeira: a União Soviética. O sindicalismo foi cooptado pelo Varguismo.
O grande fato novo, pós-ciclo-militar foi o surgimento do Partido dos Trabalhadores (PT), como uma nova esquerda mobilizadora, surgidos de baixo, não-dogmática, e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), como sindicalismo combativo independente, e a articulação de ambos com diversos movimentos sociais, inclusive os segmentos religiosos progressistas.
A esquerda brasileira foi revitalizada no mesmo momento em que entrava em crise em um mundo que se “en-direita-va…”. Pretendia-se caminhar em um “partido sem patrões”, organizado na base em núcleos, articulados com a sociedade, “rumo ao socialismo”, de forma plural e criativa, sem alianças espúrias, apostando-se na ética na política, na transparência e na participação popular, vivendo-se as micro-utopias possíveis nas gestões municipais, ampliando-se a presença e a influência na academia e no parlamento, no movimento estudantil, entre as mulheres, os negros, os sem-terra, os sem-teto e outros segmentos discriminados ou excluídos.
Vinte anos de experiência pedagógica, de acumulação de estudos e de propostas, formação de quadros, campanhas memoráveis, “sem medo de ser feliz”.
Mas, sem que a maioria se aperceber-se, o Partido dos Trabalhadores foi mudando. Claramente, “não é mais aquele”. Os núcleos foram desaparecendo, o controle da máquina partidária foi sendo ocupada por quadros profissionalizados, à liderança se tornando parlamentares, secretários municipais ou assessores em ambos os poderes, um “bloco majoritário” impõe a sua vontade sobre os minoritários condenados eternamente a serem minoritários, pouco mais podendo fazer do que o “jus sperniandi”…
Ao contrário dos seus congêneres europeus, as mudanças ideológicas não foram resultado de um amplo, profundo e demorado debate interno e externo. O PT não teve o seu Bad-Godesberg. Foi dormir socialista com a “Carta de Olinda”, e acordou social-democrata com a “Carta ao Povo Brasileiro”, elaborada a poucas mãos, imposta de cima para baixo. A quarta campanha presidencial privilegiou o plástico e o emocional, o vago e o superficial. O resultado imediato seria a vitória da esperança sobre o medo, como caminho para a mudança, sem que soubéssemos exatamente quais, como, com que parceiros e a que preço.
Na campanha os simples, ingênuos e puristas militantes foram obrigados a subir nos palanques com as lustrosas raposas das corrompidas oligarquias regionais (o que foi particularmente dramático no caso do nordeste).
O antigo “partido sem patrões” arranjou um patrão para a vice-presidência. O Império foi tranqüilizado, como tranqüilizado foi esse ente aparentemente etéreo chamado de “mercado”. O FMI aprovou um “socialista moderno”. A grande imprensa passou a apoiar o “governo das mudanças”. Mas que tipo de mudanças?
A aparente desorientação, a aparente falta de programa, ou falta de propostas, não significa que o PT não as tivesse, (e muitas e boas), mas, sim, o seu abandono, em um processo de ruptura com a História, de negação do passado. Há que se construir novos programas, apressadamente, inconsistentemente, com os novos parceiros e a nova ideologia.
Houve o fato simbólico da eleição de um “homem do povo”, a incorporação de quadros de uma contra-elite ao aparelho de Estado (reduzindo, ao menos, nesse caso, o desemprego…), novos símbolos, novas retóricas, novas caras, novos nomes. E daí? A velhíssima política macro-econômica dos superávits primários, do alto juro, do alto desemprego. A requentada “reforma da previdência”, evitando-se as questões de fundos, empurrada de goela abaixo, demonizando-se os servidores públicos, caçando-se os marajás…
Tudo em nome de um pretenso “projeto estratégico”, que ninguém sabe qual é. Apelou-se para a intolerância de um centralismo democrático, e a pecha de “radicais” para quem pretendeu ser coerente com a história e a identidade.
A frustração parece que venceu a esperança, sacrificada no altar do realismo.
A CUT vai “batendo fofo”, em um pêndulo ainda não decidido entre a “correia de transmissão” e o neo-peleguismo. Afaga-se, ainda, retoricamente, os movimentos sociais, mas, na prática se os trata como “questão de polícia”, na manutenção da Lei e da Ordem.
O Pacto com as elites vai se consolidando. A aproximação meio-populista, meio-messiânica com as massas desarticuladas vai-se processando. Dos conscientes e incômodos setores médios (os fiéis eleitores) vai-se afastando. Dentre estes, o funcionalismo público já foi rifado, e os intelectuais críticos censurados.
A transição para a social-democracia, para a terceira, quarta ou não-sei-o-que via, vai-se dando, em marcha inexorável, sem dó, nem piedade, ressalvada a ética e as boas intenções de alguns atores coadjuvantes. Pretende-se, com o apoio técnico dos marqueteiros, ampliar a filiação partidária sem consistência, sem massa crítica. Não há mobilização, não há conscientização, não há crítica ao sistema, não há construção de utopias, o espaço do protesto dá lugar a um silêncio que dói.
Não se pode usar a desculpa do “pouco” tempo de governo para uma avaliação. O que importa são as sinalizações. Avaliar, é, ainda tentar reverter.
Uma página da história política brasileira parece que foi precocemente e lamentavelmente) virada. Temos que ser honestos: há uma profunda crise na esquerda. Os intelectuais, a classe trabalhadora, os servidores estão se sentindo órfãos.
Vale a pergunta clássica: E agora o que fazer?
De um lado há frações de esquerda dentro dos ex-partidos de esquerda, como o próprio PT, o PcdoB, o PSB, o PDT. Há os partidos da chamada “ultra-esquerda”, que hoje, pelos menos, tem tido o papel de lembrar ao conjunto da esquerda partidária as teses abandonadas e as bandeiras arriadas. Não sei se serão capazes de se unirem em um novo partido autenticamente de esquerda no Brasil. Temos setores de esquerda no movimento sindical, no movimento popular, nas organizações não-governamentais, entre intelectuais e no mundo religioso.
E aí nos lembramos de duas coisas: A esquerda conseguirá superar, de forma dinâmica, os paradigmas do passado (o marxismo e suas variações, em especial o stalinismo, o leninismo, o trotskismo), retendo apenas o que for válido para hoje? Haverá uma nova síntese? Construirão novos paradigmas?
O capitalismo é uma patologia social. Remédios foram tentados, com prescrições equivocadas ou efeitos colaterais negativos indesejáveis.
As pesquisas, os experimentos, devem continuar, porque o fracasso de uma terapia não transforma a doença em sanidade.
Outros aspectos, são as idéias de Gramsci, quando previa que as grandes transformações poderiam não advir pelo aparelho de Estado, mas pela Sociedade Civil. Sociedade Civil onde se situam as instituições religiosas, inclusive o rico e amplo acervo de pensamento socialista acumulado através dos séculos pelo cristianismo católico-romano, ortodoxo e protestante, pelo judaísmo e pelo Islã, e, até, em religiões fora do monoteísmo semita, estudadas antes de 1964, desconhecidas pela presente geração pós-marxista.
O socialismo materialista contemporâneo ocupou o cenário da esquerda (mesmo sendo versões seculares do pensamento religioso) e hoje é imperativo o diálogo, o intercâmbio, o encontro fecundo dessas duas vertentes.
Seja, negativamente, legitimando os colonizadores ou o domínio oligárquico, seja, positivamente, defendendo os indígenas e a justiça social, o Cristianismo é parte histórico-cultural visceral da realidade latino-americana.
Por isso, já se afirmou que “As igrejas não farão a revolução na América Latina, mas não acontecerá sem elas”.
Pertenço a uma geração que alcançou a busca de saídas por uma esquerda cristã não-marxista, com a difusão entre nós do pensamento católico-romano progressista francês, da democracia integral e do solidarismo, com nomes como Maritain, Mounier, Gabriel Marcel ou o Pe. Lebret, da reflexão social do movimento ecumênico, do personalismo cristão de um Martin Luther King. Protestantes que não podiam se esquecer dos ensinos sociais das Sagradas Escrituras, os episódios pós-reforma dos Niveladores e dos Cavadores, ou dos contemporâneos movimentos do Socialismo Religioso e do Socialismo Cristão. Mesma época de um vigoroso movimento socialista entre a juventude judaica brasileira.
Essa construção se retrai com a hegemonia do marxismo, para, posteriormente, vermos se disseminar entre nós a Teologia da Libertação e a Teologia da Missão Integral da Igreja.
O crescimento vertiginoso do fundamentalismo protestante na América Latina durante o ciclo de ditaduras militares [1] (que apoiavam, ativa ou passivamente) reprimiu e reduziu uma caminhada, reproduziu-se, com atraso, a polarização norte-americana entre “Evangelho Social” e “Evangelho Individual”, promoveu-se a alienação política, o direitismo autoritário, o pragmatismo clientelista, e, com a Teologia da Prosperidade, a sacralização do Capitalismo.
Se usarmos a imagem do Monte da Transfiguração, podemos dizer que a tendência pentecostal ou carismática tendeu a optar pela proposta do Apóstolo Pedro, de acampar e curtir a experiência mística, e que a Teologia da Libertação tendeu a ir direto para os vales, sem passar pelo monte. Quando o movimento contínuo entre monte e vale é parte integral do exemplo do ministério e missão de Jesus de Nazaré e de seus discípulos.
Temos valorizado a contribuição do Congresso de Lausanne e seu Pacto, e da Fraternidade Teológica Latino-Americana, para a disseminação da proposta da Teologia da Missão Integral da Igreja em nosso continente e em nosso país. O MEP – Movimento Evangélico Progressista é uma legitima expressão desse momento histórico.
O que seria, então, esses “cristãos progressistas” (particularmente os “evangélicos progressistas”), e qual o seu papel diante da profunda crise por que passa a esquerda no Brasil?
Lembro-me do debate sobre a nomenclatura mais adequada quando da fundação do MEP: “evangélicos de esquerda”? “evangélicos revolucionários”? “evangélicos socialistas”? Optamos pela expressão menos controvertida de “progressistas”, embora isso lembre um conceito positivista. Hoje poderíamos falar em um “cristianismo profético”, em “Igreja profética”, em cristãos que incluem o profetismo (“denúncia das estruturas iníquas da sociedade”) em seu conceito de Missão, a serviço do Reino de Deus.
Os anos 80-90, a partir da crise do regime militar presenciaram o ressurgimento de um “evangelicalismo progressista”, com alguns veteranos e muitos jovens, desejosos de conciliar sua fé com sua prática, e de resgatar a herança dos evangélicos abolicionistas, republicanos, democratas e socialistas. Timidamente, com o movimento pela anistia, e com mais desenvoltura com a campanha das “diretas já”, pela “Assembléia Constituinte” e no episodio do “Fora Collor”. Um marco importante foi as eleições presidenciais de 1989, e o surgimento do “Movimento Evangélico pró-Lula”, espaço de abnegação e idealismo, incompreendido tanto pelas Igrejas, quanto pelos partidos de esquerda, e que conseguiu se organizar nacionalmente. Para João Amazonas, então presidente do PcdoB, “foi o fato novo mais importante da campanha”.
O MEP surge em 1990 com o sentimento de continuidade e aprofundamento de um discipulado integral, que inclui a cidadania responsável. Um importante movimento de opinião, afirmando a compatibilidade entre a fé cristã reformada, protestante, evangélica, com a democracia e o socialismo. O MEP estimulou essa militância nos partidos de esquerda, nos movimentos sociais e nos sindicatos filiados à CUT.
As campanhas presidenciais de 1994 e 1998, além de campanhas estaduais e municipais, aprofundaram e ampliaram esse leque de participação, vendo-se o desabrochar de uma nova geração de evangélicos, compartilhando sonhos e lutas, pela ética na política, pela cidadania plena, pela justiça social, por um modo de produção humano e solidário.
Grande parte dessa geração heróica nem sequer foi lembrada pela presente administração federal, que prestigiou fisiológicos adesistas conhecidos, e, o que é pior, históricos adversários de sua proposta. Isso tem causado perplexidade, tristeza, desapontamento. O que tem prevalecido? O potencial quantitativo de votos de uma denominação?
Interesses regionais futuros? Uma ética de resultados que substitui uma ética de princípios? O realismo no lugar do idealismo? Não seriam os evangélicos progressistas “indesejáveis” agora porque são principistas, puristas, coerentes?
No cenário atual estamos fragmentados, como evangélicos progressistas:
a) os que estão no governo integrados (confortável ou desconfortavelmente) ao bloco majoritário;
b) os que estão no governo, no sufoco, fazendo parte dos grupos minoritários, assustados ou atemorizados diante da virulência do “rolo compressor”;
c)os que procuram se equilibrar em um apoio crítico e uma discordância propositiva;
d) e, os que se sentem empurrados para o caminho da oposição, não querendo a desconfortável companhia co-beligerante da direita.
O quadro é surpreendente e confuso. Nessas circunstâncias é sempre bom nos voltarmos aos princípios que devem nortear, sempre, em toda época e lugar, a participação política dos cristãos, sem querermos emitir julgamentos sobre os que vivenciam essas alternativas.
Que princípios seriam esses?
01. Desde César até Hitler afirmamos um só Senhor, Jesus Cristo, e uma lealdade única e absoluta a Ele, sua mensagem e suas demandas. Todas as demais coisas da Criação – inclusive o mundo da política – por mais importantes que sejam, são secundárias em nossa lealdade, e devem ser medidas por sua adequação ou não aos valores do Reino de Deus, de Justiça e Paz, Honestidade e Amor;
02. Jesus rejeitou a opção adesista e fisiológica dos herodianos, o racionalismo pragmático dos saduceus, o formalismo conservador dos fariseus, a alienação isolacionista dos essênios e a luta armada pretendida pelos zelotes. A opção do Reino de Deus é algo mais e mais profundo, com os pés na História, mas comprometidos com o conteúdo da revelação e a iluminação do Espírito Santo;
03. Nenhum partido político, ideologia ou governo podem ser identificados com o Reino de Deus. A nossa participação será sempre crítica, o que acarreta incompreensões e retaliações tantas vezes;
04. A postura da Igreja como instituição deverá ser sempre, em todas épocas, lugares e regimes, de independência. Somos a agência do Reino de Deus, sua vanguarda, ensaio e sinal na História. Em decorrência, condenados a tentação teocrática de tutelar os governos, a tentação césaro-papista de sermos tutelados pelo governo e a tentação secularista, de estarmos a reboque do Estado e da Cultura sem transcendência. Devemos nos constituir em uma consciência moral da nação. Uma escola de estadistas e de cidadãos éticos e responsáveis.
Não é nosso papel sacralizar o capitalismo com a Teologia da Prosperidade, buscando privilégios pessoais e corporativos, insensíveis à injustiça e à opressão, associando-nos acriticamente e aulicamente aos governantes na busca de vantagens. Devemos resistir a tentação do poder. Devemos resistir à tentação do silêncio culposo.
Devemos considerar que discipulado acarreta sempre o risco da martíria.
Devemos interceder sempre pela realidade sócio-político-econômica do mundo e do nosso país. Devemos conhecer bem essa realidade, sendo bem informados. Devemos nos posicionar diante dessa realidade, nem como ingênuos, nem como interesseiros. Devemos permitir que o Espírito Santo de Deus flua em nós a ira santa, a santa indignação dos profetas diante do pecado social e estrutural de regimes, culturas e nações.
É nosso papel afirmar e denunciar, protestar e propor, “sendo diferentes e fazendo diferença”.
Afirmemos a Providência de Deus sobre a História, alimentemos a “in-conformação com este mundo”, pensemos os pensamentos de Deus, pois, como afirma o apóstolo Paulo: “vós tendes a mente de Cristo”.
Estimulemos a criatividade, devolvamos a esperança.
Não advogo nem a continuidade de um apoio incondicional a um governo com quem temos óbvias e marcantes diferenças, nem uma ruptura completa, lavando as mãos enquanto ele vai se deslocando cada vez mais para a direita e a integração às elites dirigentes e ao sistema capitalista. Não temos outra alternativa imediata do que o apoio tópico e a oposição tópica, caso a caso, tema a tema. Queremos o bem estar da Pátria e dos brasileiros, mas não somos vocacionados a melhor gerir o capitalismo que os próprios capitalistas. É nosso dever analisá-lo. É nosso dever desenvolver uma massa crítica. É nosso dever procurar superá-lo. O que está aí é algo, mas é muito pouco, e muito aquém. Não é uma tensão irracional e irresponsável entre o “possível” e o “desejável”, mas a conscientização e a mobilização permanente em torno de algo maior no futuro, que transcende os limites do atual governo.
Sonhamos que a terra que a Deus pertence, também pertença ao povo que Deus criou. Sonhamos que todos ganhem o seu pão com o suor do seu rosto e não com o suor do rosto do próximo. Na Bíblia a escravidão, a servidão e o emprego aparecem em textos descritivos e com a ética possível naquelas conjunturas, mas Deus não criou o emprego, Ele criou o trabalho e o lazer (no sétimo dia).
Um dia todos trabalharão para si, como pessoas, como famílias, como comunidades.
A nostalgia da perfeição social da Ordem da Criação perdida no Jardim do Éden, e o suspiro pela perfeição social da Ordem da Restauração readquirida quando vier a Nova Jerusalém, nos motiva, a partir dos ensinamentos sociais das Sagradas Escrituras e da experiência histórica da Igreja, iluminados pelo Espírito Santo, a viver o possível da História, lutando pela superação do mal, “perseguindo altos ideais”.
A esquerda brasileira vive uma das mais profundas crises da sua história, e não adianta fazer de conta que não é assim. Há dor, há decepção, há frustração. Sejamos parte da solução e não do problema.
Que o Senhor da História nos dê visões, nos dê discernimento, nos dê lucidez, nos dê determinação, nos dê coragem. Coragem para ser.
Coragem para falar. Coragem para criar. Coragem para propor. Coragem para sofrer.
A esquerda não morreu, mas renascerá sempre das cinzas. A Igreja Profética será capelã dessa gênese do novo. “As coisas velhas já passaram, mas eis que algo de novo está surgindo”.
Ele aperfeiçoará a sua força em nossas fraquezas.
Tornemos o Evangelho relevante para a nossa geração.
Os in-conformados de Deus não estão derrotados.
Que Ele nos ajude.
E a Ele toda a glória!

Dom Robinson Cavalcanti
Bispo Diocesano