Os filhos de Issacar e nosso novo Milênio

Autor: Ronaldo Lidório

Há um provérbio Gonja, tribo no oeste africano, o qual diz que “os cachorros de ontem não conseguem caçar os coelhos de hoje” mostrando que novos problemas demandam novas abordagens e concluindo simplesmente que os coelhos de hoje são mais espertos do que os de ontem.
Neste novo milênio a Igreja é confrontada pelo mercantilismo que cultua os resultados e despreza os valores tentando ensinar os padres e pastores que “importa crescer – não importa como”. Somos desafiados pela filosofia da intolerância social na Igreja que leva-nos a ressaltar as pequenas diferenças e ocultar os fantásticos pontos que temos em comum com o outro, o qual, paradoxalmente, segue o mesmo Senhor e estará conosco na eternidade. Somos ensinados que “o novo é sempre melhor” desencadeando uma corrida pelos ventos de novidades e doutrinas apesar de sabermos que o evangelho é antigo, os profetas viveram na Antigüidade e a própria Igreja neo-testamentária já conta com 2.000 anos de história como nos ensina Hesselgrave.
Creio que precisamos aprender com a família de Issacar. Em 1 Crônicas 12 encontramos Davi prestes a ser coroado Rei em Hebrom “segundo a palavra do Senhor”. A partir do verso 24 lemos uma longa lista de clãs e famílias que subiram para a peleja em cumprimento da visão de Deus, entretanto, no verso 32 quando se falava sobre “os filhos de Issacar” o Espírito Santo decidiu imprimir ali duas expressões de impacto sobre aquele clã quando afirmou que: “Dos filhos de Issacar, conhecedores da época, para saberem o que Israel devia fazer, duzentos chefes, e todos os seus irmãos sob suas ordens”.
A expressão “conhecedores da época” pode ser literalmente traduzida por “estudiosos dos fatos” ou ainda “conhecedores da história e suas implicações”. O texto, portanto, fala sobre homens que eram informados, atualizados, que possuíam percepção do que acontecia ao seu redor.
A Segunda expressão de impacto sobre estes “filhos de Issacar” é justamente “… para saberem o que Israel devia fazer”, ou seja, com “discernimento” sobre que caminho tomar.
Todas as famílias e clãs ali listados caminhavam juntos com o alvo de coroar a Davi, entretanto, havia entre eles homens que iam além da dinâmica da massa: que estudavam a história, que discutiam sobre as implicações dos fatos, que se atualizavam a cada dia, que provavam cada informação e buscavam discernimento do Alto sobre que atitude tomar. Estes “filhos de Issacar” eram estudiosos, entretanto, também piedosos; acadêmicos, mas orientados pelo Espírito; usavam o intelecto mas queriam ouvir a voz de Deus.
Preocupo-me com alguns fatos em nossos dias. Sobretudo dois neste momento.
O desenvolvimento de uma personalidade disfuncional na Igreja de Cristo
Cirenius, teólogo bizantino, afirmou que “a Igreja sofrera a tentação de desenvolver a sua personalidade e perder a sua finalidade. À imagem do primeiro homem, a Igreja também peca quando esquece o porquê está aqui e imagina ser suficiente apenas o existir. Torna-se assim tal qual uma linda rosa vermelha… a qual nasce, cresce, murcha e morre em um campo distante sem por ninguém ser vista, sem a nenhum olhar dar prazer”.
O hedonismo tem entrado na Igreja levando-nos a crer que a razão maior da nossa vida é nossa própria felicidade. Não raramente nossa alma, confrontada pelo pecado, tende a se apoiar na justificativa hedônica: “afinal, não tenho eu o direito de ser feliz” ? Desta forma a Igreja torna-se automaticamente um mercado onde o produto oferecido é a auto-satisfação e quem não o apresentar de forma capaz e competente é penalizado pela evasão dos membros para um mercado mais atraente. A conseqüência vital deste psiquismo cristão é uma comunidade disfuncional, alienada de qualquer projeto que não venha a saciar o próprio coração.
Devemos sonhar com uma Igreja onde os pastores e padres preocupam-se menos em agradar seus rebanhos e mais em pregar a Palavra. Onde os líderes não negociam os valores do evangelho em detrimento de uma brilhante reputação. Vivenciamos hoje a atual tendência da errática cristã a qual tenta incluir-se nas bênçãos do evangelho e auto excluir-se de sua prática. A anti-bíblica vontade de ver a terra arada sem por as mãos no arado.
A carnal tendência humana de esquecer que Deus é maior do que nós
“Glorificar a Deus” ao longo dos séculos passou a ser mais uma expressão cristã enclausurada nos discursos teológicos do que uma prática de vida. Lembro-me que, após expor Romanos 16 para um grupo de líderes religiosos em uma aldeia africana, um deles concluiu: “sim, então podemos dizer que glorificar a Deus é reconhecer que Ele é maior do que nós”. Creio que haviam entendido a mensagem.
Hoje tendemos a esquecer que Deus é maior do que o homem, que a glória de Deus importa mais do que a nossa glória, que o Senhor é soberano e nós dependentes da Sua graça.
Alguns teólogos do século 19 olhavam para a vida de Jesus e pensavam: Ele fracassou. Olhem bem para os seus discípulos, seus amigos do peito. Ele não foi capaz de evitar-lhes a dor, a perseguição ou o sofrimento. Nem mesmo para os 12, os mais chegados. Passaram por açoites, foram perseguidos e traídos. Caíram enfermos e alguns foram martirizados. George Strauss, no fim do século 19, zombava dizendo: “Ele não tinha poder. Seus amigos morreram sós, traídos e em sofrimento. Morreram sem glória”. Strauss, apesar de irônico, liberal e distante da verdade, acertava em sua última afirmação: “Morreram sem glória”. Mas morreram para a glória de Deus.
A primeira Missão da Igreja não é proclamar o evangelho, não é se expandir nem mesmo conquistar a mídia ou impactar a sociedade. A primeira Missão da Igreja é morrer. Perder os valores da carne e ser revestida com os valores de Deus. É se “desglorificar” para glorificar ao seu Deus. Quando perguntaram a George Müller sobre o segredo do seu sucesso ministerial, a sua resposta imediata foi: “O segredo de George Müller é que George Müller já morreu há alguns anos atrás”. É tempo de reconhecer que Deus é maior do que nós.
À luz do que foi dito, talvez um dos grandes desafios da igreja de Cristo neste começo de milênio seja expressar uma vida compatível com a sua fé: a busca pelo Cristianismo autêntico e sincero ensinado por Jesus. Uma Igreja onde o líder cristão não apenas ensina o seu rebanho, antes serve de modelo para ele; onde o perseguido não faz guerra ao perseguidor, mas intercede por ele; onde o menor é o maior, morrer é um ganho, só se tornam fortes os que reconhecem a fraqueza, anda-se duas milhas com quem te obriga a andar uma, vira-se a outra face a quem te fere, não há apego a este mundo pois todos são peregrinos, a garantia é uma promessa e só se alcança a vida quem primeiro morre.
Que Deus faça de nossos crentes filhos de Issacar. Homens e mulheres dispostos a não seguir cegamente a dinâmica da massa, mas estudá-la sob o crivo das Escrituras, pesando os fatos, calculando o preço, e mostrando o caminho a andar.