A IGREJA E O PODER POLÍTICO

Isaltino Gomes Coelho Filho
Terminei a leitura dos dois primeiros volumes da obra de Elio Gaspari sobre o regime militar de 1964, A ditadura envergonhada e A ditadura escancarada. Serão cinco volumes e, infelizmente, somente no segundo semestre de 2003 é que sairá o terceiro.
Foi uma leitura fantástica. Muito do que Gaspari narra ainda está na minha memória, mas sem a clareza por ele mostrada. Tudo nos chegava de maneira deturpada e vendida com outra roupagem. É óbvio que sua obra não pode ser considerada infalível, embora seja erudita e muito bem documentada. Os vários adjetivos distribuídos ao longo das narrativas e algumas expressões por ele empregadas mostram que é um trabalho objetivo, mas com suas emoções afloradas. Mas que é um trabalho extraordinário e, até agora, o melhor que já li sobre o Brasil recente, não há dúvidas.
Detive-me num personagem cujo nome omito. Impressionou-me sua palavra nos seguintes termos: “Matem os terroristas, matem os carteiros que entregam suas cartas. Os familiares, os amigos, seja o que for. Só não quero que morra nenhum de vocês”. Pode ser que a memória me traia (afinal, não sou nenhum Othon Amaral), mas este personagem, ligado a torturas e assassinatos, era casado com uma senhora que era membro de uma igreja batista na capital bandeirante. E, pode ser que a memória me traia mais uma vez, chegou a ter sua foto estampada no O Jornal Batista. E, por favor, memória, não me traia, chegou a ocupar púlpito de igreja batista. E era apologista da tortura.
Isto foi na década dos setentas. Foi um período difícil para quem não se deixou seduzir pela propaganda oficial. Sabíamos que havia tortura, mas nada falávamos. Muitos aplaudiam o regime. Eu era um pastor de 24 anos, e ouvi um político evangélico dizer, num retiro de pastores, que o regime estava muito frustrado com as críticas da Igreja Católica e que aquela era a nossa oportunidade. De nossa parte houve silêncio e oportunismo. Hoje é muito fácil, e até dá um certo charme, criticar o regime que se esvaiu. Naquela época, eu o fiz em várias ocasiões, o que me valeu o pouco original epíteto de “comunista”. Cheguei a ser impedido de pregar numa igreja por causa disso.
O raciocínio vigente em nosso meio era este: “A esquerda é atéia, materialista, logo é demoníaca. O regime veio combatê-la, logo o regime é bom”. Como o texto de Romanos 13.1 foi usado para justificar que devíamos aceitar o regime! O versículo passou a divinizar o Estado, o que não aceitei e não aceito. O Estado é um arranjo humano. Várias vczes questionei o argumento, com perguntas tipo: “E por que apoiaram a deposição de Jango? E o que fazer num regime comunista? Como fazer diante de monstros como Hitler e Stalin?”.
Hoje a situação é diferente. Alguns dos terroristas estão no poder. Não emito juízo de valor sobre eles, neste contexto. O que me preocupa é verificar o mesmo maniqueísmo daquela época vigorando em nossos dias: “o lado pelo qual optei é o certo, é o lado de Deus, e os outros estão errados”. Vejo, como aconteceu no regime militar, a sacralização do poder político e o uso da Bíblia para legitimar a opção por um sistema. Não se usa Romanos 13.1. Usam-se Amós 5.24 e similares para mostrar que, se há preocupação com o social, determinado partido político pode ser encaixado como o correto e os demais, postos como errados. Apenas, em vez de se usar a expressão “forças moralizadoras e preservadoras da ordem” se usa a expressão “forças progressistas”. Ontem, chamava-se o discordante de “comunista”. Hoje, de “reacionário”. No fundo, o mesmo sentimento: o desprezo ou ódio ao oponente. Mudou-se a cosmética. Preocupa-me, hoje como ontem, ver a sacralização de determinadas idéias políticas e a demonização de idéias opostas.
Minhas palavras talvez não consigam penetrar na mente de muitos. Ainda estamos muito impregnados das discussões sobre a teologia da libertação, de modo que tentar dissociar teologia de política e de economia parecerá, para alguns, um absurdo ou alienação. Mas é necessário. E quem me presumir alienado estará ignorando um passado. Nos anos setentas, eu era um pastor na faixa dos vinte anos. Não aceitava a “canonização” do regime, e, a um militar que me disse que “lugar de pastor era na igreja”, respondi que “lugar de militar era no quartel”. Hoje pode se dizer isto com facilidade. Não naquela época. Tanto que dele ouvi este conselho: “Cuidado para não acordar com a boca cheia de formiga”. Não sou um alienado. Mas quero ressaltar o perigo que vejo com a tentativa de se cobrir com um manto teológico as discussões de calibre político. E de messianizar políticos ou ideologias.
A história tem mostrado que todas as vezes que o poder religioso abraça um poder político é por ele engolido e se descaracteriza. É como um abraço de tamanduá. Foi assim que surgiram os “cristãos alemães”, que hipotecaram apoio a Hitler. Martin Niemöller, pastor alemão, exultou com o triunfo da revolução nazista, e Richard Rothe, teólogo alemão, chegou a sugerir a fusão da Igreja com o Estado, pois o Estado alemão, perfeito, encarnaria as noções do Reino de Deus (Karl Barth et la politique, p. 15). Até hoje a Igreja Católica tenta recuperar a imagem, muito desgastada, de Pio XII (lembro-me de como, aos 9 anos de idade, chorei quando de sua morte) de ter apoiado o nazismo. Na revista Istoé, de 25 de março de 98, lê-se que “Vaticano reconhece omissão da Igreja no Holocausto, mas defende atuação do controvertido papa Pio XII”. As defesas de Pio XII sempre me pareceram frágeis. Como a que veio no Estadão, de 24 de janeiro de 2002: “O papa Pio XII tentou várias vezes exorcizar Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial. A informação foi dada pelo teólogo alemão Peter Gumpel, que confirmou a notícia publicada no jornal italiano Il Messagero”. Convenhamos, uma defesa bastante pífia. O comprometimento ficou registrado e tentativas de exorcismo à distância não o apagarão. É oportuno lembrar que os regimes políticos são instituições humanas e sujeitos a falhas e erros grosseiros. Quem messianizou Collor de Mello deve ter visto isto. Alguns segmentos católicos santificaram a repressão militar. Gaspari afirma que “na grande divisão ocorrida no país em março de 1964, a maior parte da hierarquia da Igreja pendera para o levante” (II, p. 237). D Jaime Câmara, cardeal do Rio, peregrinou “ao Santuário de Aparecida, onde agradeceu a santa salvação do país”, após o levante militar. O bispo de Diamantina, d. Geraldo de Proença Sigaud disse, justificando a tortura, que “confissões não se conseguem com bombons”. Pouco tempo depois, conventos católicos estavam sendo invadidos e padres e freiras sendo torturados. O regime usou a Igreja Católica até onde quis. Depois de firmado, agrediu-a.
Eventualmente, a fé cristã e um regime político poderão ter pontos de vistas semelhantes. Como disse Francis Schaeffer, os cristãos deverão ver no regime um “co-beligerante”, mas nunca um parceiro. É sempre oportuno recordar que a Igreja não é da direita nem da esquerda nem do centro. É de cima. Tentar colocá-la a reboque de qualquer idéia política é praticar um reducionismo teológico, é desvesti-la de sua grandeza e singularidade. Todos nós temos o direito de possuir nossas convicções políticas. Uma igreja batista não é curral eleitoral nem propriedade do pastor. Mas todos devemos ter cuidado para não sermos aprisionados por uma ideologia, por um regime ou por um programa político. Devemos ser cautelosos para não, como já se fez no passado, identificar um político ou um programa político como “cristãos na sua essência”. Será desastroso. As linhas divisórias entre fé e ação política logo se apagarão. Geralmente elas já são bem tênues.
Nas vezes em que lecionei em Cuba, no Seminário de Santiago, à noite detinha-me diante de um dos dois canais de televisão cubanos, ambos estatais. Era uma maneira de acostumar meus ouvidos com a sonoridade do sotaque cubano. Como sempre, os canais saíam do ar com louvação a Fidel Castro. Em um dos programas, ele estava em um encontro com pastores evangélicos afro-norte-americanos. Esta expressão foi pronunciada por um
deles: “O Dr. Fidel pode não crer em Deus, mas praticar Deus é mais importante do que crer em Deus”. Fiquei atônito. A expressão, além de absurda em seus termos, mostra com que facilidade se perdem os referenciais da fé quando se é seduzido pelo poder político. Lembra o Pe. Vidigal, com sua famosa frase: “do que nós estamos precisando no Brasil é substituir a norma evangélica ‘amai-vos uns aos outros’ por outra: ‘armai-vos uns aos outros'” (Gaspari, II, p. 238). Não era mais um sacerdote católico a falar, mas um acólito da violência. Não é bom abraçar ideologias políticas como inspiradas por Deus. Acaba se perdendo a noção de bom senso. O poder apaga o pudor.
Há muito frenesi político em nosso meio. É melhor que a alienação. Mas se a teologia não é um discurso oco sobre o nada e deve manifestar-se sobre o cotidiano humano para não ser inócua, não pode ser amoldada a discursos políticos, a ideologias ou a programas, de que partido sejam. Cuidado para não colocar o evangelho como suporte religioso de programas sociais e políticos. Geralmente, os pastores são ingênuos. Pensam que estão exercendo influência e modificando a política, quando avalizam políticos. Não entendem que estão sendo usados. E mais tarde, ficarão desgastados. São como laranja. Extrai-se o melhor e, quando no bagaço, descarta-se. Não devemos ser partidários, mas guardiões da justiça, da decência, da dignidade e do respeito humano. Como nem sempre praticamos estas coisas em nossas instituições, devemos colocar nossa casa em ordem primeiro, e depois teremos condições de ser reservas de moral e de dignidade. Coloquemos nossa casa em ordem e, em vez de apologizar um sistema, sejamos observadores atentos e críticos. Participantes do processo social, sim; mas cristianizá-lo, não.